“A violência é como uma comida que a gente coloca para dentro do nosso corpo por ser algo muito objetivo. Uma imagem e um som também compõem a nossa biologia porque entram pelos nossos olhos e ouvidos. Por isso, eu, como artista e pessoa, evito produzir e consumir imagens de violência, embora entenda que a gente está permeado por sensações e situações de violência. Negar isso seria algo muito ingênuo porque ela existe. [A gente se perguntava] como entregar algo sem endossar a energia da violência. Então, eu queria que a cena que acontece isso tivesse outras camadas, como o erotismo, tesão e tensão”.
O longa-metragem “A Cozinha” marca o debut do artista Johnny Massaro como diretor no audiovisual brasileiro. Após consolidar a carreira com papéis de destaque nas novelas “Deus Salve o Rei”, em 2018, e “Malhação”, de 2010, o ator se reuniu com Felipe Haiut, Saulo Arcoverde, Julia Stockler e Catharina Caiado para transpor a narrativa baseada na peça de mesmo nome para as telas. O filme será disponibilizado na sexta-feira, dia 17 de novembro, no catálogo da Globoplay. O projeto abre um espaço de debate para temas sensíveis que envolvem as raízes da violência masculina, as relações sexuais e de intimidade e a construção das identidades e dos afetos para os homens. Além de protagonista, Haiut assume a função como roteirista e produtor do filme.
A obra foi produzida em tempo recorde durante a pandemia da Covid-19: seis dias. Ainda sem a vacina e obedecendo aos protocolos sanitários de testagem, a pequena equipe de produção e elenco se reuniu no Vale Criativo, no município de Itatiaia, para iniciar as gravações do projeto. Em 2020, o roteirista e o diretor atualizaram tópicos relacionados aos personagens, sentimentos e ao filme e mudaram o final da narrativa, diferindo o longa da peça de teatro. A intimidade cultivada pelo elenco transcende as filmagens, já que o grupo de artistas encenou junto a peça homônima em 2017.
Originalmente, o longa estreou na Première Brasil Novos Rumos do 24° Festival do Rio, em outubro do ano passado. Ele foi o único filme do evento a ganhar uma sessão extra. Além disso, participou da 46° Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e teve todas as sessões esgotadas. O produto audiovisual compõe a segunda coprodução entre a Hipérbole e a Cosmocine, uma premiada produtora carioca.
Dá até então trajetória de 18 anos — hoje, o período total soma mais de duas décadas — como ator, Johnny trouxe toda uma bagagem emocional e de experiência com as câmeras.
“Ter esta bagagem me fez entender que quem está do outro lado, o ator e a atriz, é a ponta mais vulnerável do processo mesmo, no sentido que todo mundo deve ser muito objetivo para lidar com aquilo ali. A câmera, a luz, o figurino e a maquiagem são muito palpáveis. Já o ator tem algo além do seu corpo, que é realmente assim muito objetivo e palpável, mas a gente está ali lidando com emoções. Isso é muito fugidio aos excessos para atingir as emoções mais adequadas. O artista vai para onde tudo está sendo construído na cena como unidade cinematográfica, que está sendo pensada para um corpo estar diante de uma câmera”, descreve.
O deslocamento foi uma experiência muito rica para ele. Com o apoio dos atores, ele desenvolveu bastante intimidade com o texto. Apesar disso, Johnny já tinha conhecimento prévio do processo de produção e gravação, adquirido pelos três curtas que fez ao longo carreira.
A abordagem da violência em “A Cozinha”
Johnny disse sentir aversão à romantização da violência e à propagação dela enquanto imagem no audiovisual. Portanto, a abordagem do tema foi muito pensada e debatida pela equipe antes de ser inserida no longa-metragem. Afinal, ela sabia da responsabilidade no tratamento do tópico das relações violentas.
“[A violência] é como uma comida que a gente coloca para dentro do nosso corpo por ser algo muito objetivo. Uma imagem e um som também compõe a nossa biologia porque entram pelos nossos olhos e ouvidos. Por isso, eu, como artista e pessoa, evito produzir e consumir imagens de violência, embora entenda que a gente está permeado por sensações e situações de violência. Negar isso seria algo muito ingênuo porque ela existe. A gente se perguntava como entregar algo sem endossar a energia da violência. Então, eu queria que a cena que acontece isso tivesse outras camadas, como o erotismo, tesão e tensão”.
A partir do filme, o roteirista conseguiu abordar a questão da violência contra corpos da comunidade LGBTQIA+. Ele ressaltou existir múltiplas formas de ataque contra essas pessoas, como física, psicológica e emocional.
Além disso, Johnny identifica os filmes como processos de aprendizado a longo prazo. Isso porque ele entendeu, de fato, a importância pessoal do filme para meses após o processo de filmagem.
Na época, eu não entendia o quanto todas as minhas questões participavam das minhas histórias. Eu levei muito do que vivi durante a minha vida. Apesar do cinema não ser um processo necessariamente terapêutico, acaba sempre sendo uma pesquisa sobre um momento que a gente está vivendo isso – Johnny Massaro
Para Johnny, um dos principais saltos da narrativa da peça para a do filme foi a atualização do lugar feminino. Ciente da limitação do lugar de fala na discussão, o ator explicou que acredita em uma conciliação das energias feminina e masculina nos corpos dos homens. No filme, também é abordada a problemática da falta de equilíbrio entre os dois polos para a mente e o corpo masculino.
Por outro lado, ele ressaltou a busca por uma constante honestidade emocional no momento de criação das narrativas. Johnny entende que qualquer outro tipo de comportamento aponta para uma “mediocridade nos processos e resultados profissionais”. Ao refletir sobre o tipo de profissional que deseja ser, o cineasta visa alcançar um deslocamento pessoal que toque nas vulnerabilidades humanas, dele, da equipe e do público telespectador.
Todos nós estávamos muito honestos e vulneráveis ali, sobretudo porque era um momento de pandemia pré-vacina. Estávamos precisando mesmo um do outro. Se a gente não fosse honesto nesse percurso, não conseguiria o resultado que tivemos. Não o resultado do filme, mas que a gente viveu honestamente o que estava se propondo – Johnny Massaro
Em um primeiro momento, Johnny e Haiut investiram o próprio dinheiro para a produção do longa, mas usaram recursos do edital Aldir Blanc para finalizá-lo. O roteirista confessou ainda não ter tido retorno financeiro do projeto, apesar de não ter tido nenhum prejuízo. O grupo acredita que o ganho pela experiência virá a partir de trocas afetivas entre eles e com o público, além de outras oportunidades no mercado audiovisual.
De acordo com Johnny, a produção do filme representou um “respiro” do isolamento social e do temor cotidiano à espera dos imunizantes contra o Coronavírus para a equipe envolvida no projeto. Apesar de algumas pessoas terem recebido um valor mínimo pelo trabalho, o projeto contou com o pagamento de participações no filme para poder viabilizar a narrativa. O artista entende que essa situação fez com que todos ali se sentissem mais “integrantes” da equipe e com poder igual de fala para contribuir.
Aspecto sensorial em “A Cozinha”
O espaço limitado de gravação despertou o desejo de tornar a experiência audiovisual de Johnny em sensorial. A conexão com as reflexões sobre o “micro e o macro” e “do que está em cima e embaixo” fez com que ele percebesse que a cozinha é um “pequeníssimo microcosmo, mas que tem tudo fora”. A construção do texto foi, então, a base de todo o processo de busca pelas sensações.
Ao destacar a efemeridade das relações amorosas contemporâneas, Johnny e Hauit buscam abordar com ironia a incapacidade masculina de lidar com as fragilidades humanas.
“Eu tive muita consciência da força da palavra dentro do filme que a gente estava fazendo e, ao mesmo tempo, entendia que a gente precisava do contraponto, de momentos de silêncio e de tempo para fortalecê-la. A força da palavra que Haiut trabalha tão bem se diluiria ali. Nele, tem muito silêncio e também momentos só com a palavra. Fiquei muito ligado no ritmo dele como se fosse uma partitura quase musical. Acredito que, por conta desta raiz teatral do filme, tinha cenas de 20 páginas e outras com apenas uma página. Eu falava ‘meu Deus, como isso vai funcionar?’ e tinha a imagem de uma montanha russa, com altos e baixos”, descreve Johnny sobre o processo criativo.
O ator explica que a materialização de algo que “pertence à dimensão das ideias é um processo complexo”. Isso se dá a partir de muitos processos e escolhas para que os responsáveis pelo projeto estejam cientes da responsabilidade com o que está sendo produzido e colocado no mundo. Johnny compreende que esses produtos audiovisuais vão, de alguma forma, compor o imaginário, a consciência e desejos dos telespectadores. Algo que ele reflete bastante, mas sem se deixar influenciar pelo peso da responsabilidade.
Em consonância, o artista acredita que as pessoas devem perseverar nos próprios projetos e narrativas para entregar aquilo que desejam ao mundo. Apesar da inabilidade de determinar a forma na qual o público vai receber o longa, ele escolhe encarar o processo e as pessoas envolvidas no projeto com carinho. A aceitação das falhas e da tentativa de tornar o processo de produção do longa mais leve foram dois pontos marcantes durante as gravações de “A Cozinha”.
Inclinação para o audiovisual
O rapaz se formou em Comunicação Social, com a habilitação em Cinema, na Estácio de Sá (Unesa), porém disse ter cultivado a relação de interesse com a produção audiovisual desde pequeno. Isso porque, aos 12 anos, quando iniciou a carreira como ator na novela “Floribella”, na Band, o rapaz brincava com o irmão e os primos ao colocá-los para produzir clipes. Em meio às brincadeira, Johnny dirigia as produções e fazia os figurinos e as artes deles.
“A coisa do ator e do diretor já estavam ali naturalmente em mim. Tanto é que, na época do ensino médio, que eu fazia ‘Malhação’, eu falei para a minha mãe que queria parar de estudar, fazer supletivo para estudar cinema. Lá mesmo na faculdade, eu já tentei me encaminhar para o lado da direção”.
Johnny elencou o momento final, em que toda a equipe foi embora do Vale Criativo, como o mais marcante de todo o processo de produção do filme. Amigos já há anos, ele e Haiut observaram o espaço onde as gravações haviam sido realizadas.
“Ficamos só eu e o Haiut vendo aquele espaço depois de ter passado por aquela experiência que parecia tão inédita. Na verdade, acho que a vida é uma sequência de fatos inéditos, por mais que a gente esteja no mesmo lugar com as mesmas pessoas. Vai ser sempre inédito. Biologicamente, a gente é sempre inédito. As nossas células mudam. O nosso corpo muda. Os nossos desejos mudam. Eu tenho cada momento como único. E aquele momento era especialmente único porque a gente não sabia se ia conseguir finalizar o projeto”, revelou ele, ao recordar do período de setembro de 2020.
Segundo o artista, o rastro de todas àquelas pessoas e experiências deixadas em Itatiaia o marcou profundamente. A ansiedade e a incerteza quanto aos próximos passos do filme e do isolamento social tornaram aquele momento de despedida emocionantes.
“Eu precisava ter acesso ao material filmado no dia anterior para seguir as gravações no dia seguinte. A gente gostava de assistir os frames feitos para ter uma consciência do que a gente estava construindo junto. Isso não seria possível em uma película, por exemplo, mas eu sentia que eu estava tentando descobrir qual era o meu método de trabalho. Não que eu tenha descoberto de fato, mas sinto que vou levar isso para todos os meus outros filmes. Quero dividir com a equipe o que a gente está fazendo porque não estou fazendo isso sozinho”, relembra.