Gritos, xingamentos, maus-tratos físicos e psicológicos e intervenções médicas desnecessárias estão entre as práticas que caracterizam a violência obstétrica. Apesar do termo ser desconhecido para muita gente, ele, infelizmente, fez parte da realidade de muitas gestantes que tiveram experiências traumáticas em uma situação em que acolhimento e respeito deveriam ser palavras de ordem.
Violência obstétrica se refere a agressões físicas e verbais que ocorrem desde o pré-natal, parto e até o puerpério, mas não se concentra apenas na figura do médico e pode envolver até um funcionário da administração do hospital e equipe de enfermagem.
“Toda ação que desrespeite a autonomia da gestante, causando danos físico ou psicológico ou indo contra suas decisões e direitos pode ser considerada violência obstétrica. Dessa maneira, é fundamental que se considere todo o sistema de atendimento a gestante”, explica a ginecologista e obstetra Tatiane Boute.
O que é considerado violência obstétrica?
Um estudo publicado pelo grupo Nascer no Brasil, da Fiocruz, acompanhou quase 24 mil mulheres, entre 2011 e 2012, em 191 municípios brasileiros, visando a uma “melhoria da qualidade da atenção e redução de intervenções desnecessárias” durante o parto.
No documento, Maria do Carmo Leal, professora de epidemiologia e coordenadora da pesquisa, menciona as práticas mais recorrentes entre as entrevistadas e que não são recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS):
- Manobra de Kristeller: 36% das entrevistadas relataram o uso da técnica, que consiste em pressionar a parte superior do útero para “facilitar” a saída do bebê.
- Litotomia: posição desfavorável ao nascimento. “A melhor posição para a mulher ficar é a verticalizada. Pode ser de cócoras, de joelhos, sentada, mas tem que ser verticalizada, porque isso aumenta a chance da força dela”, justifica a professora.
- Soro de ocitocina: hormônio sintético utilizado para acelerar as contrações do útero.
- Episiotomia: corte cirúrgico feito no períneo, ao final de um parto normal, para “facilitar” a saída do bebê. Além de ser doloroso para a mulher, o procedimento deixa pontos internos, pode causar incontinência urinária e dores durante a relação sexual.
A obstetra Tatiane Boute completa a lista com outros exemplos comuns de más condutas: qualquer tipo de discriminação, a proibição da permanência de um acompanhante, uso de medicamentos sem necessidade ou consentimento e comunicação agressiva
Conheça as práticas mais comuns da violência obstétrica e os direitos das gestantes durante o parto — Foto: Pexels
Consequências destas práticas
Além dos problemas citados acima, a médica afirma que a violência obstétrica pode deixar marcas físicas graves e duradouras, como lacerações, hematomas, lesões no tecido vaginal e, a longo prazo, maior risco de desenvolver disfunções sexuais e dor crônica.
A parte emocional também pode ficar comprometida e desencadear outros problemas. Boute explica, por exemplo, que o vínculo entre a mãe o bebê pode ser prejudicado, pode gerar transtornos psicológicos e até interferência na amamentação – uma vez que o estresse sofrido no parto pode dificultar a produção de leite.
O que dizem os órgãos de saúde sobre violência obstétrica?
A FEBRASGO (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia) critica o termo em questão por apresentar, segundo eles, uma “conotação preconceituosa que, sob o falso manto de proteger a parturiente, criminaliza o trabalho de médicos e enfermeiros”.
Ao mesmo tempo, a federação defende a importância de um parto de qualidade, seguro e respeitoso, declarando que “todas as mulheres têm direito ao mais alto padrão possível de atenção à saúde” e repudia, veementemente, “os abusos, os maus-tratos, a negligência e o desrespeito durante o parto.”
Em nota à imprensa, o Conselho Federal de Medicina (CFM) também coloca que o “uso dessa expressão agride a comunidade médica”, mas condena qualquer tipo de ação que estimule a violência contra pacientes e profissionais.
“No caso da mulher, em todas as fases da vida, além de proteção contra a violência, o CFM defende que lhe seja oferecida assistência em saúde de forma integral e com qualidade, em especial em períodos de gestação (pré, durante e pós-parto), para lhe assegurar e ao seu filho vida e bem-estar.”
Pesquisa feita pela ‘Nascer no Brasi’, da Fiocruz, atua com o intuito de melhorar a qualidade dos partos e reduzir interferências desnecessárias — Foto: Pexels
‘Lista de recomendações sobre cuidados intraparto para uma experiência positiva’
A Organização Mundial da Saúde publicou um documento que resume algumas das principais recomendações durante as três fases do trabalho de parto, cuidados com a mãe após o nascimento e com o bebê.
- Cuidados respeitosos na maternidade;
- Comunicação eficaz entre os profissionais e a gestante;
- Permissão para ter um acompanhante da escolha da gestante;
- Técnicas de relaxamento e métodos para alívio da dor.
Técnicas não recomendadas pela OMS:
- Política de episiotomia;
- Pressão uterina;
- Medicamentos (intravenosos ou não) para prevenir o atraso do trabalho de parto.
Episiotomia e o uso de soro de ocitocina estão as práticas não recomendadas pela Organização Mundial da Saúde — Foto: Pexels
Como auxiliar as vítimas
“O primeiro passo é acolher a paciente e apoiá-la em suas escolhas e necessidades. O ideal é sempre um suporte multiprofissional, com apoio de médico e psicólogo”, orienta a médica.
É essencial que a vítima receba informações claras e precisas sobre os tratamentos disponíveis e esteja ciente sobre as opções de suporte, como psicoterapia e grupos de apoio, por exemplo. No caso de lesões na musculatura do assoalho pélvico, Boute explica que é recomendado o tratamento com uma fisioterapeuta especializada.
Denunciar as práticas abusivas para as autoridades competentes, como o Conselho Regional de Medicina (CRM) e o Ministério Público, é um direito da vítima e uma forma de garantir que o caso seja investigado.
‘Muita mulher soube nomear as violências obstétricas que sofreu pela minha fala’
Carolinie Figueiredo relata que os médicos aplicaram a Manobra de Kristeller durante parto do primeiro filho — Foto: Reprodução/Instagram
Carolinie Figueiredo é uma das milhares de mulheres vítimas de violência obstétrica. Em 2011, a atriz e terapeuta deu à luz sua primeira filha, mas foi somente depois de dois anos que ela conseguiu “nomear e compreender o que tinha acontecido”.
Ao gshow, ela conta que utilizaram a Manobra de Kristeller: “Alguém da equipe montou na minha barriga e a empurrou. Eu jamais saberia de tudo isso, porque em 2011 não era comum falarmos sobre violência de gênero e o não respeito aos corpos das mulheres, principalmente em vulnerabilidade, que é o caso da mulher que vai parir.”
Quando já estava vivendo sua segunda gestação, algo despertou um incômodo em Carolinie que a fez trocar de médica para “uma equipe, realmente, humanizada e com histórico de nascimentos respeitosos para a mulher e o bebê.”
Foi nesse momento, enquanto contava à nova médica sobre a primeira gravidez, que ela se deu conta de que havia um termo para os abusos que havia sofrido durante o parto:
“O fato de não terem me dado água e comida, de não deixar eu me movimentar para apoiar as contrações, os comentários violentos e desnecessários da equipe na hora do nascimento e, principalmente, o mais doloroso, a decisão de chamar alguém da equipe pra empurrar o meu bebê da minha barriga quando eu tinha contrações mais pesadas já no [período] expulsivo”, relata.
Ela ainda comenta que a prática poderia ter lhe causado uma lesão grave, deslocamento de placenta, fraturas e até prejudicado o vínculo com a bebê. Apesar de não ter acontecido, tratam-se de marcas que “permanecem no corpo, no trauma, no medo da entrega e principalmente no vínculo imediato com o bebê.”
‘Fui vítima de violência obstétrica de forma brutal e espero que a Justiça confirme isso’
Shantal Verdelho fala sobre violência obstétrica que sofreu durante o parto do segundo bebê — Foto: Reprodução/Instagram
Em 2022, outro caso de violência obstétrica veio à tona. A influenciadora digital Shantal Verdelho, que havia dado à luz sua segunda filha no ano anterior, revelou o “momento de muita violência”, física e psicológica, que havia sofrido durante o parto.
Ao gshow, ela conta que, logo após o nascimento da filha, teve “uma sensação de que algo não estava legal”. Mas demorou alguns meses até que o pressentimento se tornasse uma certeza, quando parou para assistir ao vídeo do parto:
“E, quando assisti, revi tudo o que aconteceu e entendi o que sofri. Inclusive, muitas mulheres relatam que é importante gravar [o parto] ou escrever logo depois o que aconteceu, porque a gente esquece.”
Por medo de atrapalhar o processo, a influenciadora acabou não contestando o que estava acontecendo na hora: “No meu caso, foi tudo conduzido de uma forma tão natural, como se fosse assim que deveria ser, mesmo com a ciência de que estava vivendo uma violência, eu estava em um lugar de extrema vulnerabilidade.”
Sobre a sensação de impotência, inclusive, Shantal reforça a importância de ter um bom diálogo com o acompanhante do parto a respeito dos direitos da gestante: “É imprescindível que você converse com o seu parceiro ou com quem vai acompanhá-la para que, caso você não consiga falar, a pessoa consiga te ajudar.”
Por fim, Shantal alerta as gestantes para que se informem sobre práticas comuns de violência obstétrica, conheça seus direitos ao longo de toda a gestação – para identificar possíveis condutas desrespeitosas ou abusivas – e pesquise sobre seu médico.
“Se você tiver a oportunidade de escolher o seu médico, pesquise com muito cuidado, tente conversar com pacientes desse médico, entender como foram esses partos e qual é a conduta desse profissional para fazer uma escolha mais assertiva.”