Ela tem uma bateria quase infinita, dezenas de funções, nunca para de trabalhar e, mesmo no modo soneca, não desliga completamente. Não, não se trata de uma nova tecnologia, mas de uma espécie de seres humanos especial a qual chamamos de mãe!
E, por mais que pareça incrível elas terem todas essas habilidades, não é nada incrível o fato delas ficarem sobrecarregadas grande parte do tempo, uma realidade para muitas “mulheres-polvo” que se dividem entre a maternidade, trabalho, tarefas domésticas e autocuidado.
É o caso destas cinco entrevistadas, que vivem em contextos e realidades muito diferentes e aceitaram compartilhar suas rotinas como equilibristas, cada uma a seu modo: a professora Carla Moura, a endocrinologista Paula Kapritchkoff, a empresária Patrícia Lima, a maquiadora Caroline Soares e a astróloga e empresária Priscila Lima de Charbonnières.
‘Descobri que estou grávida’
Crescer, estudar, se casar e ter filhos: a programação que parece vir de fábrica nos seres humanos, vem perdendo força ao longo das décadas e dando espaço a novas construções familiares. Priscila Lima de Charbonnières, de 48 anos, nadou contra a correnteza social quando decidiu que queria, primeiro, ser mãe e só depois fazer faculdade. E assim fez: entre os 19 e 23 anos, engravidou três vezes e, só então, iniciou a graduação em psicologia. Anos depois, deu à luz sua caçula, fruto do segundo casamento.
A astróloga Priscila Lima de Charbonnières surpreendeu a família ao anunciar que queria ser mãe antes de fazer faculdade e explicou por que tomou essa decisão — Foto: Arquivo pessoal
Mesmo pegando os pais de surpresa, ela afirma que nunca se arrependeu do caminho que escolheu. Pelo contrário, ter entrado na faculdade aos 25 anos a fez encarar a experiência com mais maturidade.
“Era diferente a minha maturidade e a minha sede de conhecimento aos 18 e aos 24 anos. A minha fórmula não é para todos, mas, no meu caso, aproveitei muito melhor a faculdade estando um pouco mais madura. E, no caso dos filhos, tenho um instinto natural de mãe e desde o primeiro filho sempre me virei absolutamente bem.”
A história da pesquisadora socioambiental e professora universitária Carla Moura, de 35 anos, foi um pouco diferente. Ela terminou a graduação em gestão ambiental e já emendou mestrado e doutorado, além do trabalho como pesquisadora no INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), o que exigia muitas pesquisas de campo: “São coisas que, pra mim, a maternidade não encaixava, a maternidade nem passava pela minha cabeça.”
Professora universitária, Carla Moura foi pega de surpresa com a gravidez. Apesar do susto, ela relata que a maternidade chegou no melhor momento de sua vida — Foto: Arquivo pessoal
Portanto, quando descobriu a gravidez, aos 30 anos, foi uma mistura de susto e felicidade para ela e o então companheiro: “Foi um choque muito grande e, ao mesmo tempo, foi uma alegria, mas principalmente por custos, né? Não fazia parte dos meus planos naquele momento e não estava, vamos dizer, focando nisso. Mas foi uma alegria, porque acho que foi o melhor momento da vida para isso ter acontecido!”
A médica Paula Kapritchkoff, de 40 anos, também tinha dúvidas sobre a maternidade. Casada na época, ela decidiu interromper o anticoncepcional e achou que teria um tempo até engravidar, mas não demorou muito até descobrir dois coraçõezinhos batendo no seu útero: “Estava grávida de gêmeos, que já foi o primeiro plot twist da minha vida [risos]!”
Mãe de gêmeos autistas, a médica Paula Kapritchkoff conta com uma sólida rede de apoio, mas reforça que é preciso uma melhora na oferta de creches — Foto: Arquivo pessoal
Separada há dois anos, a endocrinologista descobriria um segundo “plot twist” mais tarde: após encarar uma depressão pós-parto, veio o diagnóstico de autismo dos dois filhos, o que, segundo ela, requer uma demanda muito específica.
“Sou a responsável financeira, a responsável logística, da rotina, de toda a carga mental e de todos os cuidados. Ele [o ex-marido] mora em outra cidade, mas, na vida dos meninos, acaba tendo um contato de pegar a cada 15 dias.”
Fundadora de uma marca de cosméticos, Patrícia Lima passou por uma situação parecida: parou de tomar o anticoncepcional após anos e achou que demoraria até engravidar. Quase que instantaneamente, a maternidade bateu à porta no mês seguinte.
A empresária Patrícia Lima conta que se arrepende de ter tentado fazer tudo sozinha ao invés de aceitar uma rede de apoio para cuidar da filha — Foto: Reprodução/Instagram
Na época, ela era dona de uma agência de publicidade já estabelecida, mas decidiu fazer uma mudança de carreira para algo que fazia mais sentido com o seu momento de vida.
“Quando minha filha nasceu, começaram a cair várias fichas! Uma delas foi: ‘Acho que não sou tão feliz fazendo o que faço’, e comecei a me questionar sobre o legado que deixaria para minha filha.”
A maquiadora Caroline Soares, de 30 anos, também passou por uma mudança de carreira ainda mais drástica. Pouco antes de descobrir que estava grávida, ela percebeu que a engenharia não tinha nada a ver com ela e decidiu transformar a paixão pela área da beleza em sua profissão.
A maquiadora Caroline Soares, que sempre sonhou em ser mãe, se deparou com a maternidade durante uma mudança de carreira — Foto: Arquivo pessoal
Com o apoio da família e do marido, ela começou seu curso de maquiagem e aproveitou os contatos profissionais que já tinha para se desenvolver na área.
“Nesse momento, a minha sogra ajudou muito a gente, porque ela ficava com meu filho e a minha enteada. Mas, sim, [a maternidade] foi algo que sempre quis, sempre quis ser mãe!”
Rede de apoio
Cada uma em sua realidade, as entrevistadas também mostram a importância de uma sólida rede de apoio, que pode contar com pais, irmãos, amigos e ajuda profissional. Acontece que existe uma pressão enorme da sociedade em cima de mulheres que não abrem mão de tudo para ficar em casa com os filhos.
Patrícia Lima, por exemplo, conta que um de seus arrependimentos é não ter aceitado ajuda profissional em meio a um “turbilhão de acontecimentos” durante os primeiros anos da maternidade. Sem entrar em detalhes sobre a participação do ex-marido, a empresária afirma que ele era um bom pai, mas quem sempre lhe deu suporte foi a irmã.
“Coloquei na minha cabeça que não queria ter babá. Hoje, olho para trás e falo: ‘Gente, mas por que que eu não tinha babá?’ E é, exatamente, porque eu tinha uma cobrança muito grande em ser a melhor mãe!”
Ela analisa tudo como um grande aprendizado, reforça a importância de pedir ajuda e aceitar que ninguém dá conta de tudo: “Acho que isso é fundamental! Penso que fui muito imatura durante muito tempo e sofri de forma desnecessária.”
Paula explica que os gêmeos recebem a ajuda de duas pessoas que, apesar de não terem formação na terapia ABA (sigla em inglês para Análise do Comportamento Aplicada) para autismo, estão na família há bastante tempo e recebem orientação dela e da equipe de terapeutas. Ainda assim, acredita que, de forma geral, precisa haver uma divisão mais justa entre os parceiros quanto aos cuidados com os filhos:
“Odeio quando falam, principalmente para mãe de autista, que a gente é muito guerreira. A gente não é guerreira, é sobrecarregada! Então, falta de rede de apoio, que na grande maioria dos casos é formada por outras mulheres da família que já estão cansadas, como avós. Também falta mobilização social, mobilização política e, estruturalmente é tudo muito machista”, desabafa a médica.
Para se ter uma ideia, na cidade de São Paulo, a fila de espera para uma vaga na creche na rede pública triplicou entre julho e setembro de 2021, segundo uma reportagem do G1: das 8,7 mil solicitações, o número cresceu para 28,5 mil. Com baixa oferta e alta demanda de vagas, a saída para cuidar dos filhos e continuar trabalhando recai sobre o núcleo familiar.
Maternidade e o mercado de trabalho
Outro obstáculo que as mães encaram está relacionado ao raro suporte oferecido no mercado de trabalho. A professora Carla é uma das que entrou para o enorme grupo de mulheres recusadas para uma vaga de emprego por estarem grávidas. Detalhe: ela já havia passado por todas as etapas do processo seletivo!
Estudo da FGV mostra que a probabilidade de emprego para mulheres decai logo após o período de licença maternidade — Foto: Unsplash
Um estudo feito pela FGV (Fundação Getúlio Vargas) aponta que a probabilidade de emprego das mães no mercado de trabalho formal decai logo após o período de licença: “Após 24 meses, quase metade das mulheres que tiram licença-maternidade está fora do mercado de trabalho, um padrão que se perpetua, inclusive, 47 meses após a licença.”
Mulher, mãe e empresária, Patrícia sabe que o mundo corporativo é pouco acolhedor quando o assunto é maternidade. Ela lembra que, desde os primeiros anos de seu empreendimento, um dos privilégios foi sempre ter a filha por perto no trabalho e que, à frente de uma empresa formada 80% por mulheres, também permite esse benefício a suas funcionárias.
“E em um ambiente corporativo fechado, você não pode. Por mais que o time seja jovem, já tive muitas mães que levavam as crianças, elas acompanhavam o dia de trabalho e para nós está tudo bem!”
Aceitar que não é possível dar conta de tudo sempre
A cobrança é um inimigo invisível em diversos aspectos. Na maternidade, ele vem em forma de culpa: culpa por não ter cumprido as mil tarefas programadas para o dia, culpa por ter se esquecido de algo ou por acha que não deu atenção suficiente ao filho e assim por diante.
Carla se lembra da fase em que a filha era muito pequena e se sentia responsável por qualquer situação que a envolvia: um choro repentino, uma movimentação diferenciada e até mesmo quando ela começou a frequentar a escola: “Era uma culpa muito grande minha deixá-la lá, porque ela não gostava.”
Priscila brinca ao falar que sempre fez “uma mágica pra manter o trabalho e atender às expectativas dos [filhos] adolescentes, bebês e crianças, todos ao mesmo tempo”, mas sempre teve em mente separar os horários de trabalho para quando eles estivessem na escola e, depois, conciliar o tempo livre em casa.
“Trabalho com psicologia e com astrologia, seria incoerente ficar o dia todo fora atendendo os outros e não conseguir dar esse apoio emocional para os meus [filhos]. Então, eu, naturalmente, me dividi: no horário em que eles estão ocupados, estou disponível para trabalhar e, no horário que eles estão precisando de algum apoio, também tenho que estar disponível para eles.”
Psicóloga especialista em cuidados de crianças e adolescentes comenta as consequências da sobrecarga maternal para a saúde mental — Foto: Pexels
A psicóloga afirma que, quando a mãe está sobrecarregada, os filhos também sentem: “Criança e adolescente são muito egocentrados. Geralmente, eles pensam que eles são culpados pelo estado emocional da mãe, então isso pode prejudicar o vínculo entre mãe e filho”.
Especialista em psiquiatria da infância e adolescência, Nina Ferreira destaca, inclusive, que essa sobrecarga e o sentimento de culpa, insuficiência ou incapacidade, podem resultar em uma ansiedade patológica, incentivar uma hipervigilância e um estado de alerta constante sobre as crianças.
As consequências secundárias desse processo, é uma carga de estresse alta e excesso de adrenalina e cortisol. Além destes problemas mentais, cognitivos e emocionais, têm as físicas, como dor no corpo, taquicardia, cansaço e fadiga.
“Antes de ser mãe e profissional, ela é um ser humano e os filhos não precisam de uma mãe perfeita e que não erre, eles precisam de uma mãe saudável! E, assim, elas vão ensinar os filhos que eles também não precisam ser perfeitos para serem amados.”
A importância do autocuidado
O despertar desta fase de cobranças se deu de maneiras diferentes para as nossas entrevistadas. Paula afirma que vê seu trabalho também como seu momento de descanso, mas que consegue fazer suas viagens, sozinha ou acompanhada de amigos, quando os filhos estão com o pai.
“Gosto muito de correr! É um momento meu, mas também tenho uma vida social sem eles. Faço bastante coisa atualmente, desde que resolvi melhorar [a rotina de autocuidado], só que antes sentia culpa nisso, quando estava sem eles.”
Já Carol conta que sempre valorizou os cuidados com ela mesma, inspirada em uma figura muito próxima, sua mãe: “Todos os dias ela estava muito arrumada, cheirosa. Após a maternidade, mesmo cansada, porque é uma loucura, eu estava sempre arrumada.”
A vaidade não se perdeu nem mesmo no dia do nascimento de João. Rindo, ela se recorda que suas malas estavam prontas para quando precisasse ir para a maternidade, mas deixou para trás um item importante:
“Uma nécessaire com maquiagem. Falei para o meu marido: ‘Não posso ficar aqui sem passar um creme no rosto, preciso de um creme para passar no meu cabelo. Imagina, o pessoal vai vir me visitar, estou aqui desse jeito?”
Uma análise realizada pela ONU (Organização Mundial da Saúde) mostra o impacto dessa longa jornada diária das mães e reforça a proposta de integrar a saúde mental materna aos cuidados gerais de saúde.
“Em todo o mundo, cerca de 10% das mulheres grávidas e 13% das mulheres que acabam de dar à luz sofrem de algum transtorno mental, principalmente depressão. Nos países em desenvolvimento, isso é ainda maior, ou seja, 15,6% durante a gravidez e 19,8% após o parto.”
Terapeuta lista algumas dicas para mães que se sentem culpadas por não darem conta de todas as tarefas, enquanto negligenciam o autocuidado — Foto: Pexels
A terapeuta Nina Ferreira também reforça algumas “notas mentais” para encarar a maternidade de forma mais leve e com menos cobrança:
- O que os filhos mais precisam é de amor e amparo: o restante das habilidades e aprendizados eles desenvolvem ao longo do crescimento.
- Saber pedir desculpas não deve ser uma tarefa apenas dos filhos: os pais erram também e está tudo bem!
- Aceitar que não é possível abraçar o mundo: isso alivia o sentimento de culpa da mãe.
- Amor-próprio e respeito: é essencial que as mães conheçam seus limites e entendam que o nascimento dos filhos não anula a existência delas como seres humanos.
- Quando a mãe está bem e vivendo uma vida em equilíbrio, elas vão passar, tanto pelo emocional, quanto pelo exemplo, mais referência de potência mental para os filhos.