O Brasil de maio de 2025 encontra-se imerso em um debate singular, impulsionado pela viralização massiva do fenômeno dos Bebês Reborn. Das telas de smartphones, onde rotinas de “maternidade” com bonecos hiper-realistas acumulam milhões de visualizações – como o “parto” da influenciadora Sweet Carol –, à austera esfera do Tribunal Superior do Trabalho (TST), compelido a esclarecer a inaplicabilidade da licença-maternidade a proprietárias desses objetos, a “loucura” dos Bebês Reborn transcendeu o nicho de colecionadores para se tornar um sintoma social eloquente. A perplexidade se adensa com a tramitação de Projetos de Lei no Congresso Nacional que buscam desde proibir o atendimento de bonecos em unidades de saúde até sugerir acolhimento psicossocial para seus cuidadores. Este artigo propõe-se a dissecar essa efervescência sob uma ótica multidisciplinar, investigando como um objeto, por mais realista que seja, desafia as fronteiras entre o real e o simbólico, impondo dilemas técnico-jurídicos e descortinando complexas dinâmicas psicológicas e psicanalíticas. Longe de oferecer respostas definitivas, busca-se tecer conexões originais entre esses campos para iluminar não apenas o fenômeno em si, mas o que ele revela sobre a sociedade contemporânea, suas carências e suas transformações.
Parte I: O Bebê Reborn como Objeto – Definições e Fronteiras
1. A Natureza Jurídica do Bebê Reborn: Coisa Inanimada, Vazio de Personalidade
No plano técnico-jurídico, a questão é, à primeira vista, singela. O Bebê Reborn, independentemente de sua primorosa artesania e da carga afetiva nele depositada, classifica-se inequivocamente como “coisa” (res) no Direito Civil brasileiro – um bem móvel, passível de apropriação, compra, venda e outras relações jurídicas de natureza patrimonial. A ele falta o atributo essencial que inaugura a proteção jurídica integral e a capacidade de ser titular de direitos e obrigações: a personalidade jurídica. Esta, no ordenamento pátrio, é conferida à pessoa natural (desde o nascimento com vida, resguardados os direitos do nascituro) e, por ficção legal, à pessoa jurídica.
A tentativa de atribuir ao Bebê Reborn um status para além de mero objeto – como se observa nas recentes demandas por “direitos” análogos aos de um infante – esbarra na lógica fundamental do sistema jurídico. Direitos pressupõem um sujeito capaz de exercê-los e, correlativamente, de cumprir deveres. O boneco, por ser inanimado, é despido de senciência, vontade ou capacidade de interação social autônoma, elementos que, mesmo em debates fronteiriços como os direitos dos animais não humanos (onde a senciência é o divisor de águas), marcam a distinção. A “ficção de pessoa” que o proprietário projeta no Bebê Reborn, por mais intensa e psicologicamente significativa que seja, não encontra, e nem poderia encontrar sem subverter as bases do Direito, guarida para a concessão de personalidade ou dos direitos dela decorrentes.
2. O Bebê Reborn na Psique: Espelho de Afetos, Palco de Projeções
Se para o Direito o Bebê Reborn é uma “coisa”, para a psique ele pode assumir uma miríade de papéis, refletindo a complexidade do mundo interno de quem o adota.
Do ponto de vista da psicologia, o boneco pode servir como um objeto de apego, oferecendo conforto e segurança. Para alguns, pode tangenciar a função de objeto transicional descrita por Winnicott, mediando a relação entre o mundo interno e a realidade externa, embora classicamente esse conceito se aplique à infância. Em adultos, pode auxiliar na elaboração de lutos (perdas gestacionais, síndrome do ninho vazio), funcionar como ferramenta de estimulação sensorial e afetiva para idosos (notadamente com demências como Alzheimer), ou simplesmente representar um hobby, uma forma de expressão artística ou o pertencimento a uma comunidade de colecionadores. A preocupação surge quando o investimento no objeto passa a comprometer a funcionalidade do indivíduo, seu contato com a realidade compartilhada ou suas relações sociais efetivas, indicando possíveis sofrimentos psíquicos subjacentes que demandam escuta e, quiçá, intervenção.
A psicanálise, por sua vez, oferece lentes para investigar as dinâmicas inconscientes. O conceito freudiano de “Das Unheimliche” (O Estranho/Inquietante) é particularmente pertinente: a hiper-realidade do Bebê Reborn, ao mimetizar o humano de forma tão precisa e, ao mesmo tempo, inerte, pode evocar essa sensação de familiaridade que se torna perturbadora, borrando as fronteiras entre o animado e o inanimado. O boneco pode ser palco de intensas projeções – desejos, medos, idealizações – e identificações. Pode funcionar como um investimento narcísico, uma extensão do eu, ou uma tentativa de materializar um ideal de maternidade/paternidade, reparar falhas percebidas na própria história ou negar ansiedades profundas relacionadas à solidão, ao envelhecimento ou à morte. A “performance” de cuidado, especialmente quando publicizada, pode ser uma encenação complexa, buscando não apenas o preenchimento de um vazio interno, mas também o reconhecimento e a validação externos.
Parte II: As Tensões Emergentes – Onde o Afeto Encontra a Lei e a Norma Social
1. “Direitos” para Quem Não Tem Direito: A Juridificação do Afeto e a Crise da Representação
As recentes tentativas de obter “licença-maternidade” ou outros benefícios laborais em função da “chegada” de um Bebê Reborn, embora possam soar anedóticas, são juridicamente infundadas e sintomáticas de um fenômeno mais amplo: a juridificação do afeto. O sistema jurídico, ao ser provocado a reconhecer direitos a um objeto inanimado, é forçado a reafirmar seus fundamentos – a distinção entre sujeito e objeto, a centralidade da pessoa humana e a legalidade estrita para a concessão de benefícios. A resposta do TST, ao esclarecer o óbvio, evidencia não uma falha do Direito, mas uma tentativa de estender categorias jurídicas para além de seu escopo e finalidade. Tais demandas, se levadas ao extremo, poderiam configurar abuso de direito ou até mesmo litigância de má-fé.
Contudo, para além da análise estritamente legal, cabe a interrogação: o que leva indivíduos a buscarem na esfera jurídica o reconhecimento de um vínculo que, por natureza, pertence à esfera do íntimo e do privado? Seria uma carência de reconhecimento social para formas de afeto não convencionais? Uma manifestação da cultura do “eu” que exige validação externa para todas as suas escolhas e sentimentos? Ou uma incompreensão dos limites e funções do Direito em uma sociedade que parece, por vezes, demandar do Estado soluções para todas as angústias? Este fenômeno pode também refletir uma crise na representação simbólica, onde a necessidade de materializar e performar o afeto busca no aparato legal um selo de “realidade” ou legitimidade.
2. Comportamento Público, Responsabilidade e os Limites da Expressão: Os Projetos de Lei em Perspectiva
A viralização dos Bebês Reborn e a ostensiva publicização dos cuidados a eles dispensados levantam questões sobre os limites da liberdade individual e o potencial impacto sobre o interesse público e direitos de terceiros. Os Projetos de Lei (PLs) recentemente protocolados – que versam sobre proibição de atendimento em unidades de saúde, sugestão de acolhimento psicossocial ou multas por uso indevido para obter vantagens – são reflexo dessa tensão.
Juridicamente, a liberdade de expressão e o direito à privacidade devem ser sopesados com a proteção da ordem pública e a prevenção de danos. O uso de um Bebê Reborn para simular uma emergência médica, ludibriar terceiros visando a obter vantagens (como assentos preferenciais ou prioridade em filas) ou causar alarme desnecessário pode, em tese, configurar ilícitos civis ou até mesmo penais, a depender do caso concreto. No entanto, a necessidade de legislação específica para regular o uso de bonecos é questionável. O ordenamento jurídico já possui mecanismos para coibir fraudes, perturbação da ordem ou o uso indevido de serviços públicos. A hiper-regulação, especialmente quando motivada por pânico moral ou pela estranheza que o fenômeno causa, pode ser desproporcional e ineficaz, além de potencialmente estigmatizante. O princípio da “ultima ratio” no Direito Penal sugere que a criminalização de condutas deve ser o último recurso do Estado, reservado para as lesões mais graves aos bens jurídicos mais relevantes.
Psicologicamente, a intensa exposição pública desses vínculos pode ter efeitos diversos no imaginário social. Para alguns, pode normalizar a expressão de afeto por objetos; para outros, pode banalizar os desafios da maternidade real ou gerar confusão, especialmente em crianças. A sugestão de “acolhimento psicossocial” presente em alguns PLs, embora possa parecer bem-intencionada, carrega o risco de patologizar aprioristicamente um comportamento que, em muitos casos, pode não ser indicativo de transtorno mental, mas sim uma expressão idiossincrática de afeto, hobby ou forma de lidar com questões pessoais.
3. A Hiper-Realidade como Desafio Estético e Psíquico: A Sedução do Simulacro
A atração exercida pelos Bebês Reborn está intrinsecamente ligada à sua hiper-realidade. Essa busca pela perfeição mimética, pela criação de um simulacro quase indistinguível de um bebê humano, é central para o fenômeno. Esteticamente, representa um triunfo da técnica artesanal. Psiquicamente, essa semelhança perturbadora pode ser tanto o que atrai quanto o que repele, ativando o já mencionado “Unheimliche”.
A indústria em torno dos Bebês Reborn floresce ao oferecer não apenas um produto, mas a promessa de uma “experiência” emocional, a materialização de um desejo. Essa “comodificação do afeto” insere-se em uma lógica de consumo mais ampla, onde sentimentos e relações são, por vezes, mediados por objetos e performances. A dificuldade de parte da sociedade em aceitar ou mesmo compreender esse tipo de vínculo – oscilando entre o acolhimento empático e a ridicularização ou patologização sumária – evidencia um “ponto cego” na capacidade coletiva de lidar com a diversidade das expressões afetivas e com o que escapa às normas convencionais de relacionamento.
Parte III: Rumo a uma Compreensão Inédita – Conexões e Prospectivas
1. O Bebê Reborn como Sintoma Contemporâneo: Ecos de uma Sociedade em Transformação
O fenômeno Bebê Reborn não é uma anomalia isolada, mas um sintoma que ecoa transformações mais profundas da sociedade contemporânea. Ele se inscreve na “sociedade do espetáculo” descrita por Guy Debord, onde a representação e a imagem adquirem proeminência sobre a realidade vivida, e a performance do afeto, especialmente nas redes sociais, busca validação incessante. Pode também ser interpretado como uma resposta à solidão na era digital e à crescente atomização social, onde a busca por conexões, mesmo que com objetos, tenta preencher um vazio relacional.
De forma mais “inédita” e prospectiva, o Bebê Reborn pode ser visto como um canário na mina de carvão das nossas futuras interações com entidades não-humanas cada vez mais sofisticadas. A maneira como a sociedade, o Direito e a psique reagem hoje ao afeto por bonecos hiper-realistas pode prenunciar os dilemas que enfrentaremos com robôs de companhia dotados de inteligência artificial, avatares em metaversos ou outras formas de “para-humanidade” que inevitavelmente borrarão ainda mais as fronteiras entre o real e o artificial, o humano e o maquínico. As questões sobre “direitos”, responsabilidade, apego e o próprio estatuto do “outro” que hoje nos parecem bizarras quando aplicadas a um boneco, poderão se reapresentar com contornos muito mais complexos.
2. Por um Olhar Integrador e Não Patologizante (a priori): Acolhimento, Limites e o Papel do Direito
Uma compreensão mais rica do fenômeno exige um olhar que integre as diversas dimensões envolvidas, evitando a patologização apriorística. É crucial diferenciar um uso saudável e lúdico do Bebê Reborn – como expressão artística, hobby, ou ferramenta terapêutica legítima – de padrões de comportamento que indicam sofrimento psíquico e prejuízo funcional. O acolhimento e a escuta qualificada, seja no âmbito da saúde mental ou nas redes de apoio social, devem preceder qualquer juízo moral ou intervenção estigmatizante.
O Direito, por sua vez, deve atuar como mediador de conflitos e protetor de bens jurídicos fundamentais, e não como um regulador de afetos íntimos ou um censor de comportamentos que meramente causam estranheza. Sua intervenção se justifica quando há lesão ou ameaça concreta de lesão a direitos de terceiros, à saúde pública ou à ordem. Tentar legislar sobre a forma como as pessoas estabelecem vínculos afetivos com objetos, a menos que esses vínculos transbordem para a esfera pública de forma prejudicial, é uma tarefa fadada ao insucesso e potencialmente autoritária.
Conclusão
O turbilhão em torno dos Bebês Reborn no Brasil de 2025 é muito mais do que uma moda passageira ou uma excentricidade isolada. Ele se situa na confluência de avanços tecnológicos na arte da simulação, profundas e variadas necessidades psíquicas e um tecido social que redefine constantemente suas normas e formas de interação. Embora para o Direito o Bebê Reborn permaneça inequivocamente uma “coisa”, o significado humano e a carga afetiva nele investidos mobilizam questões que tensionam as categorias jurídicas, desafiam a compreensão psicológica e psicanalítica das configurações do desejo e do sofrimento, e nos forçam a confrontar nossa relação com a realidade, a representação e a alteridade.
A “sombra do real” projetada por esses bonecos hiper-realistas ilumina, paradoxalmente, aspectos cruciais da nossa humanidade e do futuro que se desenha. Ao invés de apenas julgar ou legislar apressadamente, talvez o fenômeno Bebê Reborn nos convide a uma reflexão mais profunda sobre o que verdadeiramente buscamos no “outro” – seja ele humano, animal, objeto ou, em breve, inteligência artificial – e sobre a capacidade de nossa sociedade para acolher a diversidade das expressões afetivas, enquanto navega as águas cada vez mais turvas entre o autêntico e o simulado.