Vulcões, vinhedos e liberdade: explorando Lanzarote, um paraíso gay friendly na Espanha

O cineasta espanhol Pedro Almodóvar certa vez se pronunciou sobre o cenário de seu filme “Abraços partidos”, de 2009: “Lanzarote é um lugar repleto de segredos e mistérios. Depois que piso na ilha, as tensões que trago de Madri desaparecem, como se essa terra tivesse propriedades curativas.” Essas palavras, em entrevista de 2008 ao jornal espanhol “El Diario”, despertaram meu fascínio por Lanzarote, a mais oriental das sete principais Ilhas Canárias.

A descrição de Almodóvar também fez com que o local parecesse o destino ideal para os eventos do Orgulho LGBTQIA+ na vizinha Grã Canária, ilha que é um dos destinos gays mais populares da Europa. Assim, em maio deste ano, enquanto os foliões se reuniam ali, fui a Lanzarote.

Depois do voo de 45 minutos a partir da exuberante e verde Grã Canária, a paisagem serena, preta e marrom foi um choque. Para absorver tudo aquilo, dirigi até a Montaña de Guanapay, colina íngreme cerca de 440 metros acima do vilarejo de Teguise, coroada pelo Castelo de Santa Bárbara.

Foi aqui, no início do século XIV, que o comerciante e navegador genovês Lancelotto Malocello mandou construir uma torre de vigia. Malocello deixou a ilha 20 anos depois por causa de uma revolta dos guanches, o povo berbere indígena da ilha, que mais tarde foi assimilado pelos assentamentos espanhóis. Mas o navegador continua vivo como a provável fonte do nome Lanzarote, e as vistas continuam espetaculares.

As Montañas del Fuego, um dos cartões-postais naturais de Lanzarote, a mais oriental das sete ilhas do arquipélago das Canárias, na Espanha — Foto: Emilio Parra Doiztua/The New York Times
As Montañas del Fuego, um dos cartões-postais naturais de Lanzarote, a mais oriental das sete ilhas do arquipélago das Canárias, na Espanha — Foto: Emilio Parra Doiztua/The New York Times

Em comparação com sua ilha irmã, muito mais movimentada e repleta de palmeiras, Lanzarote é estéril, com vilarejos ocasionais de casas caiadas de branco que aparecem como teias de aranha nas encostas dos vulcões, em sua maioria adormecidos, que criaram a ilha. Lugar estranho, que amei imediatamente.

Também entendi por que a mais seca e ventosa das principais Ilhas Canárias discretamente se tornou um novo refúgio para as pessoas criativas da Espanha e de outros países europeus, bem como para um número crescente de americanos, agora que há voos diretos de Newark, em Nova Jersey, para Tenerife. Lanzarote é um local primordial que se apossa da mente, com vastos horizontes que ressoam com a eternidade.

Um charme sedutor

A Igreja de Nossa Senhora de Guadalupe, no vilarejo de Teguise, em Lanzarote, parte das Ilhas Canárias, da Espanha — Foto: Emilio Parra Doiztua/The New York Times
A Igreja de Nossa Senhora de Guadalupe, no vilarejo de Teguise, em Lanzarote, parte das Ilhas Canárias, da Espanha — Foto: Emilio Parra Doiztua/The New York Times

A cerca de 128 quilômetros da costa do Marrocos, Lanzarote compartilha a aura renegada de destinos LGBTQIA+ de longa data como Key West, na Flórida, e Provincetown, em Massachusetts, nos Estados Unidos. Não é de estranhar que a ilha tenha seduzido muitos artistas, escritores e celebridades, entre eles o ator Omar Sharif e o romancista português José Saramago. César Manrique, pintor e arquiteto visionário, além de filho mais famoso de Lanzarote, retornou à ilha e moldou sua identidade única ao liderar a luta para evitar a chegada de hotéis altos e outdoors.

Logo descobri que concordava com Almodóvar: também me senti seguro e acolhido por essa ilha. Talvez seja porque os conejeros, ou habitantes de Lanzarote, são geralmente gentis. Quando me peguei dirigindo na contramão de uma rua de mão única em Teguise, uma mulher saiu correndo de uma padaria, fazendo “não” com o dedo, e me deu um biscoito com cobertura de açúcar e geleia de figo. Depois me disse que seria mais fácil apenas me levar até o hotel. Entrou no carro e me levou ao Palacio Ico, hotel envolvente com nove quartos, criado pela artista suíça Heidi Bucher, a partir da restauração que fez de uma mansão das Canárias construída em 1690.

O Palacio Ico é um hotel com nove quartos que funciona numa mansão restaurada que data de 1690 em Teguise, na ilha de Lanzarote, nas Canárias, Espanha — Foto: Emilio Parra Doiztua/The New York Times
O Palacio Ico é um hotel com nove quartos que funciona numa mansão restaurada que data de 1690 em Teguise, na ilha de Lanzarote, nas Canárias, Espanha — Foto: Emilio Parra Doiztua/The New York Times

Enquanto relaxava com uma taça gelada de vinho branco seco de Lanzarote na galeria coberta na área externa do meu quarto espaçoso, dois franceses que reconheci do avião subiram as escadas do pátio abaixo. Eu me arrisquei a dizer um bonsoir, e acabamos batendo papo.

Era minha primeira vez em Lanzarote, mas, como quase todos os outros estrangeiros que conheci durante os três dias que passei lá, os franceses já haviam estado na ilha muitas vezes antes.

— Nós dois viajamos muito a trabalho, e este é um de nossos lugares favoritos para passar um tempo juntos — disse um dos homens.

O casal tinha acabado de participar dos últimos três dias de comemorações do Orgulho LGBTQIA+ em Grã Canária.

— Lanzarote é o lugar perfeito para relaxar depois do Orgulho — comentou o outro.

A fachada do novo César Lanzarote Hotel, em Lanzarote, uma das ilhas do arquipélago das Canárias, que pertence à Espanha — Foto: Emilio Parra Doiztua/The New York Times
A fachada do novo César Lanzarote Hotel, em Lanzarote, uma das ilhas do arquipélago das Canárias, que pertence à Espanha — Foto: Emilio Parra Doiztua/The New York Times

Eles me convidaram para jantar, mas eu já tinha planos de encontrar uma amiga lésbica de Edimburgo que estava hospedada no novo e glamoroso hotel César Lanzarote. Em vez disso, decidimos almoçar no dia seguinte.

Ela estava sentada no bar com dois surfistas suecos quando cheguei. O casal, que visita a ilha frequentemente, guarda suas pranchas em um armário para usá-las na Famara Beach durante suas viagens.

A comida do restaurante César estava deliciosa, incluindo as batatas enrugadas das Canárias com mojo, o molho picante que é um item básico nas mesas locais, os camarões-vermelhos grelhados e uma tortilha com ropa vieja (carne bovina desfiada) e legumes.

Voltei tarde e fiquei sentado do lado de fora, olhando para a infinidade de estrelas brilhantes. Senti uma corrente de adrenalina, como na primeira vez em que fui ao enclave gay Fire Island Pines, em Nova York. Naquela ocasião, e em Lanzarote, essa sensação veio do prazer inconsciente de conhecer pessoas interessantes que, por acaso, eram gays.

Garrafas de vinho e tubos de lava

Na vinícola El Grifo, fundada em 1775, é possível ver a técnica tradicional de cultivo das parreiras em Lanzarote, nas Ilhas Canárias — Foto: Emilio Parra Doiztua/The New York Times
Na vinícola El Grifo, fundada em 1775, é possível ver a técnica tradicional de cultivo das parreiras em Lanzarote, nas Ilhas Canárias — Foto: Emilio Parra Doiztua/The New York Times

Em razão do vento e do calor escaldante, Lanzarote pode parecer um lugar improvável para a produção de vinho, mas as videiras se tornaram parte essencial do ecossistema da ilha. Nos últimos dez anos, o número de vinícolas D.O. (ou com designação de origem) na ilha mais do que dobrou, chegando a 21.

Os espanhóis trouxeram as primeiras videiras para as Canárias em meados do século XV, e a excelência dos vinhos das ilhas explica as frequentes referências a elas nas peças de Shakespeare e o nome do porto de Canary Wharf em Londres, onde as importações eram descarregadas.

Como a degustação de vinhos é uma atividade inerentemente social, reservei um passeio matinal de três horas e meia com a Wine Tours Lanzarote, que oferece vários tipos de passeios em grupos de no máximo oito pessoas.

Nosso guia espanhol, nascido em Madri, mas atual morador da ilha, nos conduziu em várias caminhadas fascinantes pelos vinhedos nos campos totalmente negros. Lá, vimos como as videiras locais são plantadas individualmente atrás de muros baixos em forma de meia-lua, chamados zocos, para protegê-las do vento.

Depois disso, encontrei o casal francês para almoçar no Bar Strava, perto do Charco de Sant Ginés, lagoa de água salgada no centro de Arrecife, maior cidade de Lanzarote.

Já que era um de seus restaurantes favoritos de Lanzarote, deixei que eles fizessem o pedido do nosso banquete de tapas. Comemos morcilla grelhada (linguiça de sangue) com geleia de cebola caramelizada e pimenta-verde, patatas bravas com maionese de kimchi e polvo grelhado com molho mojo. A comida estava excelente, mas nosso almoço foi breve.

Bar Strava, em Arrecife, a maior cidade de Lanzarote, nas Ilhas Canárias, Espanha — Foto: Emilio Parra Doiztua/The New York Times
Bar Strava, em Arrecife, a maior cidade de Lanzarote, nas Ilhas Canárias, Espanha — Foto: Emilio Parra Doiztua/The New York Times

Partimos em seguida para descobrir o legado de César Manrique.

— Ele é um dos artistas mais fascinantes do pós-guerra na Europa, mas hoje é pouco conhecido fora daqui. Acho que a bissexualidade atrapalhou a carreira dele — disse um dos meus companheiros de almoço.

Manrique, que foi casado, nunca falou sobre sua sexualidade, mas a Fundação César Manrique em Lanzarote confirma que ele provavelmente era bissexual.

Manrique nasceu em Lanzarote em 1919, estudou arquitetura em Tenerife e depois arte em Madri. Em 1964, mudou-se para Nova York, onde expôs suas pinturas no Museu Guggenheim e na Galeria Catherine Viviano, tornando-se amigo de artistas como Andy Warhol.

Em 1966, retornou a Lanzarote e começou a trabalhar em seu primeiro projeto, o Jameos del Agua, centro cultural e de arte construído dentro de um túnel vulcânico. Um jameo é uma grande abertura em forma de caverna em um tubo de lava, criada quando parte do teto desmorona.

— Manrique acreditava que tudo que o homem construía só deveria tornar a paisagem mais bonita — ouvi um guia dizer quando entramos em um anfiteatro natural com vista para uma piscina habitada por caranguejos albinos.

Em seguida, fomos a um lago artificial azul-turquesa com a orla pintada de branco, um jardim de cactos que Manrique criou dentro de uma antiga pedreira de areia vulcânica e o impressionante Mirador del Río, que oferece vistas espetaculares da costa norte de Lanzarote.

Na Fundação César Manrique, antiga residência do artista, exploramos um labirinto selvagem de salas subterrâneas criadas a partir de enormes bolhas de lava endurecida com decorações que lembravam James Bond e o filme “Barbarella”, ficção científica dos anos 1960. Além do glamour, é também um lugar comovente que expressa a personalidade sensível do artista, que morreu em um acidente de carro em 1992.

Sozinho no jantar, experimentei a culinária moderna das Canárias do chef Victor Valverde no restaurante do Palacio Ico. O menu degustação de 90 euros incluiu sopa de salmorejo feita com tomates orgânicos locais de Tinajo e guarnecida com sorvete de queijo de cabra defumado, camarões-vermelhos com molho de gengibre e limão, bochecha de porco preta com demi-glace de tomilho e mousse de gofio com molho de caramelo salgado (gofio é uma farinha tradicional das Canárias).

Ao fim dessa refeição excelente, conversei com o chef e descobri que ele é de Madri, estudou no País Basco com Martín Berasategui, chef que ganhou três estrelas do “Guia Michelin”, e trabalhou em Londres antes de se apaixonar por Lanzarote há cinco anos.

— Tento usar o máximo possível de produtos tradicionais cultivados na ilha, e as limitações dessa despensa têm sido extremamente estimulantes para mim como chef — comentou Valverde, acrescentando em seguida: — Me siento tan libre aquí.

“Eu me sinto tão livre aqui”. A verdade é que também me senti.

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