O Dia das Mães é o momento em que elas recebem toda atenção, carinho, presentes e almoços especiais. Mas será que um dia do ano “paga” todo o trabalho doméstico invisibilizado que elas realizam?
Aparentemente, não. E existe uma matemática por trás desta resposta: de acordo com dados apresentados, em 2018, pelo Instituto Locomotiva, as mulheres gastam cerca de 92 horas por mês em afazeres domésticos ou cuidando de outras pessoas. Caso recebessem por isso, elas ganharam mais R$ 1 trilhão por ano!
Além da questão financeira, a saúde mental é, muitas vezes, deixada em segundo plano. Um estudo recente da USP coletou mais 800 entrevistas e o resultado é alarmante: 97% das mulheres disseram se sentir sobrecarregadas, enquanto o sentimento de esgotamento foi citado por 94%.
Segundo a psiquiatra Nina Ferreira, a pressão social é a principal responsável pela exaustão materna e por “colocar a mulher e mãe nessa postura de ter, necessariamente, que priorizar a maternidade e ela não pode reclamar. Isso, com certeza, gera impacto na saúde mental, porque ela não encontra um lugar de acolhimento, só lugares de pressão, tanto vindo dela mesma, quanto de fora.”
Diante dos relatos a seguir, pode-se dizer que “divisão de tarefas domésticas” nunca foi o termo apropriado para a atual e majoritária estrutura familiar no Brasil que, segundo o IBGE, é composta por 50,8% dos lares sustentados e cuidados por mulheres.
[Atenção: as histórias abaixo podem conter gatilho]
“Se desdobrar” é uma expressão bastante recorrente nestes depoimentos, a começar pelo de Dayana Costa Batista, de 41 anos. Mãe de dois filhos, um menino de 21 anos e uma menina de 6, ela conta que não recebe ajuda do pai da caçula, não possui rede de apoio e não tem muito tempo para descansar durante o dia. Mesmo diante de tantos “nãos”, a assistente administrativa encontrou forças para voltar a estudar e aproveita o período em que filha está dormindo para se dedicar aos estudos.
“Apesar de muito cansativo, me desdobro para tentar dar conta. Talvez meu único momento [de descanso] seja durante o banho. O cansaço é nítido, me cobro muito por não ser 100% sempre, mas quem é? Já fiz terapia, mas a grana ‘apertou’ e, entre manter minha filha em uma boa escola e pagar uma terapia, optei por ela.”
Exaustão materna: apesar de darem o melhor, mães relatam sentimento de culpa por acreditarem que não fazem o suficiente pelos filhos — Foto: Unsplash
Daniela de Oliveira Santos Sena, de 32 anos, é mãe de duas meninas, Isabela e Catarina, com recente diagnóstico de autismo. Apesar de contar com o marido nas tarefas domésticas, rotina é uma palavra que não faz parte do seu dia a dia.
As minhas tarefas são feitas com base nas necessidades das meninas. Têm dias em que consigo dar conta de tudo, mas têm dias que são bastante difíceis por causa da Catarina e preciso largar tudo para passear com ela. Então, às vezes consigo fazer tudo e, às vezes, nem banho consigo tomar, porque estou exausta.”
— Daniela de Oliveira Santos Sena
O que é fazer o suficiente para os filhos?
Daniela é uma em uma multidão de mães que relata ter crises de ansiedade, cansaço constantes e que, apesar de darem o seu melhor, não sentem que fazem o “suficiente”. Mas o é o “suficiente”? Não é possível ter uma resposta concreta, mas Nina Ferreira acredita que buscar a perfeição é um caminho doloroso e inexistente:
“É muito comum o sentimento crônico de culpa e, consequentemente, ter uma ansiedade aumentada, um estado de hipervigilância, tentando antecipar riscos e resolver. Pode até não causar, necessariamente, uma doença psiquiátrica, mas esse contexto reduz a qualidade de vida. […] E tudo que elas precisam fazer pelos filhos é, de fato, demonstrar o amor, tirar um tempo para conversar com eles, falar que os ama e, nos momentos necessários, ser firme e colocar limites, porque é o papel da mãe e do pai, de educarem.”
Daniela afirma que seu marido a ajuda muito em casa, mas ainda sente o peso da autocobrança e se compara às mães solo, que “fazem todas as tarefas sem receberem ajuda” e que, acredita ela, “dão conta de tudo”.
“Eu acordo e durmo pensando que estou falhando como mãe. Têm dias que são tão cansativos, que eu só queria acordar quando tudo estivesse resolvido. Isso não é menosprezar o que o pai faz, por que o meu esposo ajuda muito, mas se eu tendo rede de apoio é difícil, imagina para quem não tem.”
Rotinas com longas jornadas
Kamila dos Santos, de 29 anos, não precisa imaginar, porque ela vive esta situação. Consultora de atendimento e mãe solo de uma menina de 9 anos, ela conta com a ajuda da mãe para cumprir a jornada de trabalho de segunda-feira a sábado.
Exaustão materna: mães abrem mão do próprio bem-estar para dar melhores condições aos filhos — Foto: Pexels
Ela descreve sua rotina como “rounds”. O primeiro round é quando está trabalhando e o segundo é quando chega em casa, recebe a filha do transporte escolar, prepara o jantar, cuida da casa enquanto ela toma banho e a ajuda no dever de casa: “Tudo isso ao mesmo tempo”, ela pontua.
Entendi que não consigo dar conta de tudo. Ela está na fase alfabetização e tenho a impressão de ser mais cansativo do que quando era um bebê [risos]. Eu não faço terapia, mas quero muito começar. Geralmente, eu falo sobre esses assuntos com outras mães e consigo me sentir um pouco melhor quanto à culpa de não sair tudo perfeito”.
— Kamila dos Santos
Mas para que tudo caiba dentro das suas 24 horas, Kamila deixa pouco ou nenhum espaço para o seu bem-estar. Ela conta que, apesar de às vezes ser “sufocante”, prefere dedicar todo seu tempo à filha para evitar comentários preconceituosos de terceiros:
“Eu vivo exclusivamente para ela, já recusei proposta de emprego por medo de ficar mais tempo longe ou ter que depender dos outros para cuidar dela. Minha filha não me impede de fazer essas coisas, mas o julgamento das pessoas às vezes nos faz pensar se vale a pena.”
Jucimara Emiliano da Silva, de 25 anos, também conhece bem essa rotina. Mãe da Malu, de 4 anos, e assistente administrativa, ela descreve seu dia a dia enquanto dá atenção à filha.
“Eu tenho plantões de 12 horas, dia sim, dia não, em um hospital. Acordo às 5 horas da manhã, levo minha filha para a casa da minha irmã, que é onde ela fica até a van escolar buscá-la, e eu vou trabalhar.”
A assistente fica fora por cerca de 14 horas, mas assim como relatou Kamilla, sua jornada também continua em casa. Até mesmo o seu “tempo livre” nos dias de folga é usado para os afazeres domésticos: “Eu vou para a academia também, mas tenho que fazer isso tudo muito rápido, porque depois minha filha chega [da escola].”
Exaustão materna: a jornada é ainda mais extensa para mães solos, que dividem a rotina entre trabalho, tarefas domésticos e o cuidado dos filhos — Foto: Pexels
A cada 15 dias, a menina passa o final de semana com o pai e é nesse momento que Jucimara tenta “encaixar” alguma programação de lazer para ela… Mas mesmo nestes poucos dias, o sentimento de culpa se faz presente: “Toda vez que ela vai, eu sinto como se estivesse fazendo alguma coisa errada.”
Sempre terão pessoas apostas para julgar e criticar as mães, seja porque decidiram seguir suas carreiras após a maternidade, por preferirem ficar em casa cuidando dos filhos, por terem seus momentos de lazer ou por verbalizarem seu cansaço. Em 2024, ainda é preciso dizer que elas devem se divertir, nem sempre darão conta de tudo, vão se esquecer de tarefas e vão se sentir exaustas!
Esse sentimento de culpa é muito presente e às vezes ele não é espontaneamente falado. Todas as mães, em algum nível, têm essa sensação de culpa e de estar deixando os filhos de lado em nome de coisas que, teoricamente, ‘são menos valiosas’. Até mesmo quando a profissão é um sonho da mãe, ela sente que está se priorizando ao invés de priorizar o filho. E muitas vezes ela ouve isso de familiares, amigos e da sociedade no geral”, analisa Nina Ferreira.
Em meio ao choro, Jucimara rebate os julgamentos de uma sociedade patriarcal que insiste em colocar sobre a mulher todo a responsabilidade sobre a criação dos filhos, mas que tão raramente lhe estende a mão para oferecer ajuda.
Eu me sinto psicologicamente cansada. A exaustão do dia a dia faz com que às vezes você perca o controle de alguma situação. Quando elas ficam doentes, o tempo inteiro é um julgamento… ‘Eu poderia ter feito isso? Será que eu errei na alimentação? A imunidade dela abaixou por que eu não dei uma fruta? Eu não dei a vitamina?’. E se eu contar isso para outras pessoas, vão falar: ‘Nossa, mas é sua filha, você quis ter’. Mas não é porque eu quis que não é pesado, a maternidade é cruel demais, principalmente para mães solteiras”, desabafa.
— Jucimara Emiliano da Silva
Especialista no atendimento de psiquiatria infantil, Nina Ferreira detalha a importância de uma abordagem médica humanizada que não acolha apenas a criança, mas os pais também. Por isso, conhecer suas histórias e contextos sociais não são apenas atitudes empáticas, mas essenciais para entender como ajudá-las.
“Antes de fazer qualquer cobrança, pergunte: ‘Me conta como que está sendo a sua situação no dia a dia? O que tem de ajuda para você? Quais são os recursos que você tem? Podemos pensar juntos uma forma de melhorar isso?’ Talvez com essa posição de acolhimento, o profissional de saúde possa desenhar uma abordagem mais adequada a partir do olhar e da possibilidade de vida daquela mulher”, sugere.
Juliana Couto tem 41 anos, é empresária, criadora de conteúdo, casada e mãe do Nico, de 5 anos, e da Isabela, de um mês. Apesar de ter uma “grande rede de apoio operacional”, sua jornada não é menos exaustiva. Enquanto o marido prepara o café da manhã, ela arruma o filho para ir à escola.
“Eu tenho ajuda para arrumar a casa e preparar o almoço, mas é uma maratona sem fim… Se eu conseguir lavar o cabelo já estou no lucro. De manhã, eu vou tomar um banho para despertar e esses são os únicos minutos para mim. À tarde, fico com Nico para equilibrar a minha ausência com ele e, entre uma mamada e outra, resolvo minhas pendências pelo celular”, ela lista seus afazeres.
Mas, aos finais de semana, ela tenta colocar um freio nessa “maratona” para dedicar um tempo para o seu bem-estar. Além de fazer terapia holística a cada 20 dias, ela reserva três horas para sair com os amigos ou apenas relaxar: “Na maioria das vezes conseguimos fazer isso, porque meus pais são super parceiros e encaram a função com muito amor. Agradeço todos os dias por essa benção de tê-los pertinho e com saúde!”
Juliana também destaca a importância de ter uma rede de amigas e mães com quem compartilha as dores e prazeres da maternidade: “Acho que nosso cansaço é muito banalizado, é como se a gente merecesse estar ali porque quisemos ter um bebê. Só quem está à beira de um colapso entende o real significado do cansaço”, defende.
O que gostariam de fazer no tempo livre?
Para muitas mulheres, esse tempo só poderia existir, quem sabe, caso os ponteiros do relógio passassem mais lentamente ou, então, se o dia se entendesse por mais algumas horas… Ao serem perguntadas sobre o que gostariam de fazer, estas mães não pensam em programações mirabolantes ou luxuosas, elas listam coisas, aparentemente, simples:
Me privo de fazer inúmeras coisas de que tenho vontade, não por medo de julgamentos, mas por opção minha. Não me sinto preparada para ter um relacionamento, coloco minha filha em primeiro lugar na minha vida e não quero abrir mão! Mas gostaria de ter um tempinho para me cuidar, praticar uma atividade física, jogar conversa fora sem me preocupar se a minha filha já jantou, tomou banho ou se está bem…”
— Dayana Costa Batista
Não saio com amigos. Desde que descobri sobre o autismo da Catarina, eu me fechei. Eu tento tirar um dia da semana para me cuidar, fazer cabelo, unha, sobrancelha, mas não é sempre que consigo. Às vezes tiro esse dia com as meninas mesmo. Eu gostaria de sair mais, mas não consigo”.
— Daniela de Oliveira Santos Sena
Desde quando minha filha nasceu, acho que saí sem ela umas quatro ou cinco vezes, no máximo. Se eu tivesse um tempo só para mim, eu com certeza me sentaria na mesa de uma praça de alimentação e comeria um lanche sem a pressa e a pressão de voltar para casa ou aceitaria o convite para um happy hour dos meus amigos do trabalho”.
— Kamila dos Santos
‘Não é terapia, mas é terapêutico’
Exaustão materna: psiquiatra lista práticas que podem deixar a rotina mais leve para quem não tem condições de ter ajuda profissional — Foto: Unsplash
Por questões financeiras, geográfica ou sociais, o acesso à psicoterapia continua sendo algo fora da realidade para grande parte da população. Portanto, a psiquiatra lista algumas práticas que podem promover a qualidade de vida das mães que, por algum motivo, não podem ter apoio profissional.
- “Se você está dando o seu melhor, você está dando o suficiente”: a médica destaca que compreender isso é extremamente importante para aliviar o sentimento de culpa e diminuir as próprias cobranças.
- “Compartilhar com uma pessoa de confiança”: segundo a especialista, é essencial ter um espaço de acolhimento, alguém com quem desabafar sobre seus sentimentos, dores e angústias sem medo de se sentir julgada.
- “Não é só descansar, é ter uma fonte de prazer”: pense em algo que goste muito de fazer e que não esteja relacionado à maternidade ou às tarefas domésticas: se exercitar, sair para jantar com amigos ou o parceiro, ler, assistir a um filme… Dedicar um tempo a uma atividade que lhe dá prazer vai aliviar o estresse, aumentar seus níveis de serotonina e tornar sua rotina um pouco mais leve.
Atenção!
A RAPS (Rede de Atenção Psicossocial do SUS) foi criada em 2017 e atende gratuitamente nas unidades de Atenção Primária à Saúde (APS) e nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do todo o Brasil.